domingo, julho 24, 2005

ao Sacha, a história de Quando o Assis desejou ser passarinho


(o Assis, numa foto de pfern)

Há uma história que eu não posso contar sozinho…
É uma coisa bonita, que me aconteceu na vida e me fez perceber muitas coisas. Daquelas coisas que só são boas porque há quem nos faça festinhas e nos explica aquilo que não podemos perceber sozinhos.
Daquelas coisas que só acontecem uma vez na vida.

Esta história, só posso contar com ela a dar-me colinho.
É que ainda me custa um bocadinho perceber que não podemos fazer do muito querer, tudo, tudinho!
Vou ver se ela pode.
Se me ajuda a contar o segredinho…
A história é mais ou menos assim:

Eu era muito, muito pequenino.
– Eras um gordinho – acrescenta ela!
Pois, era gordinho mas tão pequeno que ainda tropeçava nas orelhas, lembras-te? E andava sempre com o queixo arruinado? (e ela faz-me festinhas no alto do miolo e entre as orelhas umas cóceguitas).
Um dia, andava eu a regalar-me com o solzinho e as corridas aos pulos pelos riscos do jogo da macaca quando, mesmo ali no beiral do muro, um bichinho de boca muito fininha e esbranquiçada, parou a rir-se para mim e falou baixinho, numa língua muito musical, com umas palavras que eu não sabia o que queriam dizer. Só que era linda, a cançãozinha que ele cantava. E dava uns pulitos que pareciam estar de acordo com a cantiga (lembras-te, perguntei-lhe. E ela abanou a cabeça sorrindo!)
Então eu tentei ir conversar com ele, mas de cada vez que me aproximava ele dava uns pulitos rápidos e afastava-se. Eu tentava chegar-me mais e ele voltava a fugir-me… eu corri depressa e… ele abriu um casaco no alto das costas e atirou-se ao ar… oh… eu também queria que os meus braços se abrissem assim e me deixassem sair da terra… mas quando experimentei, aterrei à doida do outro lado do muro, magoei o braço esquerdo com o jeito que lhe dei e ele tinha, entretanto, desaparecido. Fiquei tão triste. Tão triste que nem as festinhas dela nesse dia me alegraram…
Mas na manhã seguinte, que sorte, ali estava ele! Pendurado a bicar o vidro da janela lá da sala. Primeiro pensei que aquela boquinha finita que lhe saia da cabeça não dava jeito nenhum para roer brinquedos (coitado) mas depois percebi que servia lindamente para fazer aquele tic tic tic toc, que parecia sapateado… e como eu gosto de música bem ritmada, assim num estilo “pantera cor-de-rosa”, conhecem?!
Essa foi uma manhã atribulada, eu tinha ficado sozinho em casa e as janelas eram coisas difíceis de abrir. Queria ouvir o que aquele tipinho dizia mas com os vidros pelo meio nada se conseguia. Então ele deve ter percebido a minha preocupação e, em vez de cantarolar baixinho como tinha feito no outro dia, apenas bateu com aquela boquita esquisita que tinha, lá na janela que dava para a varanda da cozinha.
Tivemos uma longa conversa sobre bailados e jogos de escondidas, sobre saltos e piruetas de bonecada. Ele percebia o que o meu nariz colado ao vidro lhe dizia (sim, que abrir e fechar as narinas constrói palavras diferentes para quem se dedica a entender a língua de quem quer ser amiguinho!) e eu sabia o significado que cada toquezito ou unhada no vidro produzia.
Entendemo-nos tão bem que, a certa altura, estávamos ali os dois, olhos nos olhos em sintonia, apenas com o vidro da janela pelo meio sem deixar que o ar respirado fosse o mesmo.
Combinámos ver-nos no outro dia.
Mas alguma coisa falhou, porque a chuva foi tanta que eu mal consegui sair para dar uma corrida.
Uhm… fiquei preocupado. Onde será que ele vivia? Seria quentinha, a casa? E como será que comia? Aquela boca fininha preocupava-me. E ela dizia sempre que não se podia viver só de brincar, era preciso comer toda a comidinha!...
Onde será que ele andaria?

Passaram alguns dias de chuva grossa e fria. Eu tentava sair mais vezes mas ela não queria que eu andasse a passear-me pela rua de nariz no ar como se tentasse cheirar o caminho que a chuva fazia… não era por isso que eu andava a pesquisar o ar… queria saber onde é que ele estaria!
Finalmente os dias melhoraram e num fim-de-semana, logo a seguir, andei pelo terraço em correria. Quase me tinha convencido que a visita do bichito de casaco largo às costas tinha sido um sonho quando… Surpresa! Pendurados nos fios duns postes lá na rua estavam muitos, muitos sujeitinhos como aquele que eu conhecia… pareciam combinar qualquer coisa! Ah, que curiosidade que eu sentia…
Desatei aos saltos a ver se eles me viam, olhavam em redor e saltitavam uns entre os outros, parecia mesmo que se preparavam para qualquer coisa. E eu ali, pulando, pulando de cabeça no ar como desde o primeiro dia.
Às tantas, o meu amigo desaparecido veio na minha direcção, parecia que planava no ar… oh, como devia saber bem, sentir ventinho na barriga e ver do alto as pedrinhas, os poisos, as cabeças, os brinqueditos… chegou-se mesmo ao meu nariz e, sacudindo os braços (pareciam xailes como a avó dela às vezes trazia) ficou-se ali a dar-me bicadinhas e a cantar um segredito.
Depois riu-se, deu meia volta e, dobrando a cabeça à descolagem, abanou a ponta do dedo mais comprido da estranha mão direita, como se me fizesse um adeus como os que ela faz quando se prepara para ir trabalhar…
Fiquei ali a vê-lo chegar junto dos outros todos ainda nos fios.
Chegaram mais uns cinco ou seis e, como por magia, saltaram todos juntos e desenharam figuras bonitas no céu desse dia…
Lá parei a imaginá-los, suspensos no ar… parado no meio do terraço, quieto ainda sem saber como pensar.
Apareceu ela, que me perguntou que via… e então disse – ah, os passarinhos… estás a ver os passarinhos, amiguito?
Então era isso que eles todos eram, pensei eu, passaritos?!
Lambi-lhe o nariz a correr e tentei saltar mais alto para ver se lhes podia acompanhar a dança, mas estatelei-me todo torto sem jeito para assim ficar.
Ela voltou a rir para mim e lá me explicou que os passarinhos voam; que têm asas e, por isso, andam em cima do ar; que são quase feitos por magia, com ossinhos finos para voar…
Mas… como é que havia eu de lhe contar o que o meu companheiro me tinha vindo dizer? Acho que choraminguei um bocadito, porque ela deu-me colo, fez-me festas e resolveu conversar comigo como se tivesse combinado com ele fazer-me aceitar.
O que se passava era isto, nunca me tinham feito nada que me fizesse perceber que, às vezes, mesmo aqueles de quem muito gostamos podem não estar sempre connosco. Nunca ela se foi embora tantas horas que eu ficasse aflitinho com medo dela não voltar. Nunca me tinham vindo dizer aquela palavra: adeus! … que era isto, - adeus!? –
Tentei sacudir com força as minhas pernocas da frente e encolher as patas de trás para ver se assim me levantava no ar, como ele, mas não consegui. Ainda me ficou a doer o músculo mais valente do braço, com a tentativa… e ela lá me segurou e então explicou:
Que às vezes é preciso ir embora dos lugares por uns tempos, para fazer outras coisas da vida… que é preciso procurar caminhos diferentes e amigos novos… que quando se deixam companheiros queridos, mesmo que por um tempo comprido, sabemos sempre onde havemos de nos encontrar.
Não é preciso andar sempre agarrado.
Não é preciso, sequer, andar do mesmo modo (como eu com quatro pés, ela sempre com dois e este amiguito novo de asas – é esse o nome do casaco das costas – no ar)… tenho a impressão que percebi. Mesmo porque ele disse que um dia voltaria. Eu só tinha que o lembrar…
Disse-me ela mais tarde que, a esse lembrar, se pode chamar pensar com a imaginação…

Mesmo porque, mal eu sabia, daí a uns tempos seríamos nós a ir viver para outro sítio… onde eu, mal podia imaginar, iria viver aventuras mais malucas que as que agora acabo de contar.

8 Comments:

Blogger Carlos de Matos said...

... A D O R E I !!

... A HISTÓRIA EM SI!
... A METAFORA!
... A VIDA!

...Parabéns!

Xi

11:12 da tarde, julho 24, 2005  
Blogger isabel mendes ferreira said...

eu que ando mt pouco prolixa e original faço minhas as palavras do meu querido Solrac...e "estoriar" assim é recriar o som do silêncio e voltar ao caminho...abraço.

12:50 da tarde, julho 25, 2005  
Blogger isabel mendes ferreira said...

...afinal é possivel a serenidade...boa noite maria.

10:24 da tarde, julho 25, 2005  
Blogger isabel mendes ferreira said...

...sede de sacudir os gestos...sede de entrar noutros desertos...sede de não ter sede...

5:05 da tarde, julho 26, 2005  
Blogger Dinamene said...

Maria, para quando um post sobre os «nossos» músicos preferidos?

3:34 da manhã, julho 27, 2005  
Blogger dulcehelenaguerreiro said...

Olá, bom dia. Assis, quando a dona acordar diz-lhe que gostei muito da sua visita. Sabes que aqui no computador também há amigos que aparecem, outros desaparecem, mas é mais difícil voltar a encontrá-los porque não deixam cheiro no ar.

11:49 da manhã, julho 27, 2005  
Blogger Cadelinha Lésse said...

Vá lá, vá lá... Do mal, o menos. Os meus canitos têm atitudes diferentes perante esses amigos de boca fininha e casaco nas costas: um caça-os e fica a tomar conta deles; ou outro caça-os e come-os! Tenho de pedir explicações ao Assis...

5:23 da tarde, julho 27, 2005  
Blogger Cadelinha Lésse said...

... e à patroa do Assis, também!

5:25 da tarde, julho 27, 2005  

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